Cap. 16 — O fruto da justificação, isto é, o merecimento das boas obras e a razão do merecimento
809. Deste modo, portanto, devem ser propostas aos homens justificados, quer tenham conservado a graça recebida, quer a tenham recuperado depois de perdida, as palavras do Apóstolo: Sede ricos em todas as boas obras, sabendo que o vosso trabalho não é inútil no Senhor (l Cor 15, 58), pois não é Deus injusto para se esquecer da vossa obra e do amor que mostrastes ao seu nome (Hb 6, 10). E estas outras: Não queirais perder a vossa confiança, que tem uma grande remuneração (Hb 10, 35). E por isso aos que trabalham fielmente até ao fim (Mt 10, 22) e esperam em Deus, se há de propor a vida eterna como graça misericordiosamente prometida por Cristo aos filhos de Deus, e "como recompensa"9 que, segundo a promessa do próprio Deus, será fielmente concedida pelas suas obras e merecimentos [cân. 26 e 32]. Esta é, pois, aquela coroa de Justiça que — como dizia o Apóstolo — lhe estava reservada para depois de seu combate e carreira e que lhe seria dada pelo justo juiz, não só para si, mas também a todos que, amorosos, anseiam pelo seu advento (2 Tim 4, 7 s). Porquanto Jesus Cristo mesmo dá a sua força aos justificados como a cabeça aos membros (Ef 4, 15) e a vide aos ramos (Jo 15, 5). Esta força sempre antecede às suas boas obras, acompanha-as e as segue, e sem ela de modo nenhum poderiam ser agradáveis a Deus e meritórias [cân. 2]. Deve-se, por isso, crer que nada mais falta a estes justificados a fim de, com as ditas obras que foram feitas em Deus, poderem plenamente, segundo o estado de vida, satisfazer à lei divina e a seu tempo (morrendo em estado de graça) conseguir a vida eterna. Porquanto Cristo Nosso Salvador diz: Se alguém beber da água que eu lhe der, não terá sede eternamente, mas brotará dele uma fonte de água que corre para a vida eterna (Jo 4, 13 s). Assim, portanto, a nossa própria justiça não se estabelece como própria, como se de nós decorresse, e também não se ignora ou se repudia a justiça de Deus (Rom 10, 3). Esta Justiça é denominada a nossa, porque somos justificados por ela, que inere intimamente em nós [cân. 10 e 11]. E esta mesma é a de Deus, em vista dos merecimentos de Cristo infundida em nós.
810. Não se deve, todavia, omitir o seguinte: Embora na Sagrada Escritura se atribua tão grande valor às boas obras, que Cristo prometeu: Quem oferecer um copo de água fresca a um destes pequeninos, em verdade não ficará sem a sua recompensa (Mt 10, 14); e o Apóstolo testifique: O que presentemente é para nós uma tribulação momentânea e ligeira, produz em nós um peso de glória (2 Cor 4, 17); contudo, longe esteja o cristão de confiar ou se gloriar em si mesmo e não no Senhor (l Cor l, 31; 2 Cor 10, 17), cuja bondade é tanta para com todos os homens, que ele quer que estes seus próprios dons se tornem merecimentos deles [cân. 32]. E porque todos nós pecamos em muitas coisas (Tgo 3, 2) [cân. 23], cada qual deve ter diante dos olhos tanto a misericórdia e bondade de Deus, como a sua severidade e juízo, e não se julgar a si mesmo, embora nada lhe pese na consciência, porque a vida do homem há de ser toda examinada e julgada, não pelo tribunal humano, mas pelo de Deus, que há de alumiar as trevas mais recônditas e manifestar os desígnios dos corações, e então cada um receberá de Deus o louvor (l Cor 4, 4), que — como está escrito — dará a cada um conforme as suas obras (Rom 2, 6).
Depois desta doutrina católica da justificação [cân. 33], que cada qual deverá aceitar fiel e firmemente, se quiser ser Justificado, o santo Concilio resolveu ajuntar os seguintes cânones, para que todos saibam, não só o que devem aceitar e seguir, mas também o que evitar e fugir.
(9) Cfr. S. Agostinho, De gr. et lib. arb. c. 8, n. 20 (PL 44, 893).
Cânones sobre a justificação
811. Cân. 1. Se alguém disser que o homem pode ser justificado perante Deus pelas suas obras, feitas ou segundo as forças da natureza, ou segundo a doutrina da Lei, sem a graça divina [merecida] por Jesus Cristo — seja excomungado. [cfr. n° 793 s].
812. Cân. 2. Se alguém disser que a graça divina [merecida] por Jesus Cristo é dada somente para que o homem possa viver mais facilmente justificado e para mais facilmente merecer a vida eterna, como se pelo livre arbítrio, sem a graça, pudesse conseguir uma e outra coisa, ainda que penosamente e com dificuldades — seja excomungado [cfr. n° 795 e 809].
813. Cân. 3. Se alguém disser que sem a inspiração preveniente do Espírito Santo e sem o seu auxílio, pode o homem crer, esperar e amar ou arrepender-se como convém para lhe ser conferida a graça da Justificação — seja excomungado [cfr. n° 797].
814. Cân. 4. Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, movido e excitado por Deus, em nada coopera para se preparar e se dispor a receber a graça da justificação — posto que ele consinta em que Deus o excite e o chame — e que ele não pode discordar, mesmo se quiser, mas se porta como uma coisa inanimada, perfeitamente inativa e meramente passiva — seja excomungado [cfr. n° 797].
815. Cân. 5. Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, depois do pecado de Adão, se perdeu, ou se extinguiu, ou que é coisa só de título, ou antes, titulo sem realidade, e enfim, uma ficção introduzida na Igreja por Satanás — seja excomungado [cfr. n° 793 e 797].
816. Cân. 6. Se alguém disser que não está no poder do homem tornar os seus caminhos maus, mas que Deus faz tanto as obras más como as boas, não só enquanto Deus as permite, mas [as faz] em sentido próprio e pleno, de sorte que não é menos obra sua a própria traição de Judas do que a vocação de Paulo — seja excomungado.
817. Cân. 7. Se alguém disser que todas as obras que são feitas antes da justificação, de qualquer modo que se façam, são verdadeiramente pecados ou merecera o ódio de Deus; ou que, com quanto maior veemência alguém se esforça em se dispor para a graça, tanto mais gravemente peca — seja excomungado [cfr. n° 797].
818. Cân. 8. Se alguém disser que o medo do inferno — que nos leva a procurar refúgio na misericórdia divina, condoendo-nos dos pecados, e faz com que nos abstenhamos do pecado, — é pecado ou faz os pecadores piores — seja excomungado [cfr. n° 798].
819. Cân. 9. Se alguém disser que o ímpio é justificado somente pela fé, entendendo que nada mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação da sua vontade — seja excomungado [cfr. n° 798. 801, 804].
820. Cân. 10. Se alguém disser que os homens são justificados sem a justiça de Cristo, pela qual ele mereceu por nós; ou que é por ela mesma que eles são formalmente justos — seja excomungado [cfr. n° 795, 799].
821. Cân. 11. Se alguém disser que os homens são justificados ou só pela imputação da justiça de Cristo, ou só pela remissão dos pecados, excluídas a graça e a caridade que o Espírito Santo infunde em seus corações e neles inerem; ou também que a graça pela qual somos justificados é somente um favor de Deus — seja excomungado [cfr. n° 799 e 809].
822. Cân. 12. Se alguém disser que a fé que justifica não é outra coisa, senão uma confiança na divina misericórdia, que perdoa os pecados por causa de Cristo ou que é só por esta confiança que somos justificados — seja excomungado [cfr. n° 798 e 802].
823. Cân. 13. Se alguém disser que para conseguir a remissão dos pecados é necessário a todo homem crer certamente e sem hesitação alguma, mesmo em vista da fraqueza e falta de preparação próprias, que os pecados lhe foram perdoados — seja excomungado [cfr. n° 802].
824. Cân. 14. Se alguém disser que o homem é absolvido dos seus pecados e justificado porque crê indubitavelmente que é absolvido e justificado; ou, que ninguém é verdadeiramente justificado, senão quem crer que é justificado; e que somente com esta fé se efetua a absolvição e a justificação — seja excomungado [cfr. n° 802].
825. Cân. 15. Se alguém disser que o homem renascido e justificado está obrigado pela fé a crer que certamente é do número dos predestinados — seja excomungado [cfr. n° 805].
826. Cân. 16. Se alguém disser que com absoluta e infalível certeza há de ter aquele grande dom da perseverança final, sem o ter sabido por especial revelação — seja excomungado [cfr. n° 805 s].
827. Cân. 17. Se alguém disser que a graça da justificação só se dá aos predestinados para a vida, e que todos os outros que são chamados, são-no, sim, mas não recebem a graça, visto estarem pelo poder divino predestinados para o mal — seja excomungado.
828. Cân. 18. Se alguém disser que também ao homem justificado e constituído em graça é impossível observar os preceitos de Deus — seja excomungado [cfr. n° 804].
829. Cân. 19. Se alguém disser que no Evangelho não há nada de preceito senão a fé, e que todas as demais coisas são indiferentes, nem mandadas nem proibidas, mas livres; ou que os dez mandamentos de modo algum pertencem aos cristãos — seja excomungado [cfr. n° 800].
830. Cân. 20. Se alguém disser que o homem justificado, por mais perfeito que seja, não está obrigado à observância dos mandamentos de Deus e da Igreja, mas somente a crer, como se o Evangelho fosse uma simples e absoluta promessa de vida eterna, sem condição de observar os mandamentos — seja excomungado [cfr. n° 804].
831. Cân. 21. Se alguém disser que Jesus Cristo foi dado por Deus aos homens [só] como Redentor em quem devem crer, e não também como Legislador a quem devem obedecer — seja excomungado.
832. Cân. 22. Se alguém disser que o justificado pode, sem especial auxílio de Deus, perseverar na justiça recebida; ou que ele não pode, com este auxílio, perseverar — seja excomungado [cfr. n° 804 e 806].
833. Cân. 23. Se alguém disser que o homem, uma vez justificado, não pode mais pecar nem perder a graça, e que por isso aquele que cai e peca nunca foi verdadeiramente justificado; ou, pelo contrário, que o homem pode, durante toda a vida, evitar todos os pecados, também os veniais, sem uma prerrogativa especial concedida por Deus, como a Igreja ensina a respeito da Bem-aventurada Virgem - seja excomungado [cfr. n° 805 e 810].
834. Cân. 24. Se alguém disser que a justiça recebida não se conserva nem tão pouco se aumenta diante de Deus pelas boas obras, mas que as boas obras somente são frutos e sinais da justificação que se alcançou, e que não é causa do aumento da mesma — seja excomungado [cfr. n° 803].
835. Cân. 25. Se alguém disser que o justo peca em qualquer obra boa, ao menos venialmente, ou (o que é mais intolerável ainda) mortalmente; e que por isso merece penas eternas, não se condenando [porém] somente porque Deus não imputa aquelas boas obras para a condenação — seja excomungado [cfr. n° 804].
836. Cân. 26. Se alguém disser que os justos não devem esperar de Deus a retribuição eterna pelas boas obras feitas em Deus, pela misericórdia do mesmo Senhor e merecimentos de Jesus Cristo, se perseverarem até ao fim, obrando bem e observando os preceitos divinos — seja excomungado [cfr. n° 809].
837. Cân. 27. Se alguém disser que não há pecado mortal algum, exceto o de infidelidade; ou que por nenhum outro pecado, embora grave e enorme, a não ser pelo de infidelidade, se perde a graça uma vez recebida — seja excomungado [cfr. n° 808].
838. Cân. 28. Se alguém disser que ao perder-se a graça pelo pecado, simultaneamente se perde também a fé; ou que a fé que permanece, embora não seja viva, não é verdadeira fé; ou que aquele que tem a fé sem a caridade não é cristão — seja excomungado [cfr. n° 808].
839. Cân. 29. Se alguém disser que não pode levantar-se com o auxílio da graça de Deus aquele que caiu depois do Batismo; ou, que pode novamente levantar-se e recuperar a justiça perdida, mas só pela fé, sem o sacramento da Penitência, como a Santa Romana e Universal Igreja, instituída por Cristo Nosso Senhor e por seus Apóstolos, tem até o presente professado, observado e ensinado — seja excomungado [cfr. n° 807].
840. Cân. 30. Se alguém disser que a todo pecador penitente, que recebeu a graça da justificação, é de tal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a obrigação à pena eterna, que não lhe fica obrigação alguma de pena temporal a pagar, seja neste mundo ou no outro, no purgatório, antes que lhe possam ser abertas as portas para o reino dos céus — seja excomungado [cfr. n° 807].
841. Cân. 31. Se alguém disser que o homem justificado peca quando faz boas obras em consideração ao prêmio eterno — seja excomungado [cfr. n" 804].
842. Cân. 32. Se alguém disser que as boas obras do homem justificado de tal modo são dons de Deus, que não são também méritos do homem justificado; ou que este homem justificado, com as boas obras que faz com a graça de Deus e merecimento de Cristo (do qual é membro vivo) não merece verdadeiramente o aumento da graça, a vida eterna e (se morrer em graça) a consecução da mesma vida eterna bem como o aumento da glória — seja excomungado [cfr. n" 803 e 809 s].
843. Cân. 33. Se alguém disser que com esta doutrina católica da justificação, expressa no presente decreto pelo santo Concílio, se derrogam de algum modo a glória de Deus, ou os merecimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não se esclarece a verdade da nossa fé e enfim a glória de Deus e de Jesus Cristo — seja excomungado [cfr. n° 810].
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